segunda-feira, dezembro 29, 2003



A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DO SER

 
  
 
Num certo dia do ano de 2002, Alemanha, Donauwoerth...



Estava eu como de costume elaborando minhas páginas para a Internet, meu fantástico universo virtual, meu Ersatz para o chamado "mundo real", quando de repente, não mais que de repente... desperta-me deste estado de quase "êxtase" a campaínha do telefone.
Pouco a pouco transporto-me para a realidade circundante, e o simples ouvir uma voz conhecida apazigua-me o espírito inquieto. Uma grande amiga no outro lado da linha, numa época em que a minha nostalgia do Brasil ganhava contornos patológicos...

Conversa vai, conversa vem, num dado momento a pessoa ao telefone questiona-me de chofre: "Verinha, como você está se sentindo na Alemanha?"... Engulo em seco... um breve silêncio em meu cérebro enevoado ... Meu Deus!!! Ela diz que estou na Alemanha... não me havia dado conta disto até então!!!
Com minha espontaneidade natural, eu replico, como que tentando amortizar o choque e permitir-me um tempo para digerir a realidade da qual ainda não me havia dado conta: “mas eu estou mesmo na Alemanha?...” Como diz o povo, ainda não me “caíra a ficha”...


 
 
APROXIMADAMENTE UM ANO ANTES... EM SÃO PAULO, CAPITAL, VILA MARIANA...


 
 
Vera Azevedo Rodrigues era uma pessoa pacata, acostumada a viver no seu pequeno “habitat” em meio à sua amada “fantastic and chaotic city”... A maior parte do tempo foragida em sua morada, um sobradinho geminado com a casa da mãe, raramente costumava sair com muitas pessoas, não ía habitualmente a festas, pois, afinal, como sabiamente dissera um amigo seu, pessoa de rara sensibilidade: “para ela não existia lugar no mundo mais aprazível do que a sua própria casa”. Tudo o que precisava era de sua solidão, de seus computadores, inseparáveis livros e telefone (para os momentos de sociabilidade)... ah, e dos seus adoráveis gatinhos Tico e Teco, que sempre considerara como verdadeiros filhos!!! Nada mais. Nada de roupas luxuosas, nada de gastos com supérfluos exceto os cibernéticos...

Por 13 anos e 3 meses trabalhara no Banco do Brasil, cumprindo uma rotina compatível com seu comportamento acomodado: acordar às cinco e meia, às seis e meia pegar o metrô rumo ao local de trabalho, às sete horas desembarcar na Rua São Bento, Agência Central – início do expediente! Restava então cumprir as 6 horas fixadas por Lei, após o que se permitia um almoço num restaurante "self service" e por fim... uma boa “siesta” até às 16 horas.
Ao final da tarde... hora de exercícios físicos!!! Os religiosamente cumpridos trinta minutos na ergométrica, depois o banho, e como corolário de toda esta cotidiana odisséia, alguns reconfortantes momentos em companhia de pessoas especiais...

Casamento? Jamais passara por sua cabeça. Ter filhos?... Muito menos ... Vera sempre fora uma daquelas pessoas convictas em sua “solteirice”, que sempre defendera com unhas e dentes desde a mais tenra idade. Em idos tempos, na aurora de sua adolescência costumava cantarolar um trecho de uma música de Roberto Carlos “...pois casamento, enfim... não é papo pra mim...”. O valor que sempre mais prezara na vida, além do amor ao próximo: a liberdade. E aos seus olhos nunca o matrimônio parecera compatível com a jóia preciosa de ser dona do próprio nariz e das próprias ações...
 
 
CORAGEM EXEMPLAR OU LOUCURA EXTREMA?... O XEQUE-MATE!


 
 
No entanto a vida por vezes nos apresenta o inusitado de uma maneira que nos deixa estupefactos, boquiabertos ... Alguns anos se passaram, Verinha então não mais trabalhava no Banco do Brasil e a despeito disto continuava sua vidinha morna, sobrevivendo graças a umas economias arrecadadas com o Fundo de Garantia e ao aluguel de um pequeno apartamento em Perdizes.

E cada vez mais se infiltrava no universo fantástico da informática, navegando por esferas antes inexploradas... Já não aceitava mais convites para sair, por vezes não atendia a telefonemas, tão absorta que estava em suas novas descobertas... O mundo chamado virtual se sobrepunha ao “real”, e um dia ela chegara a profetizar, comentando com um amigo: “Está por chegar o dia em que vou mergulhar dentro deste computador e não vou sair nunca mais... então você só poderá se comunicar comigo por e-mails...”.

Dito e feito...

Após dias e noites trancafiada dentro de casa, adentrando mais e mais profundamente o subterrâneo cibernético, pálida, com profundas olheiras em virtude de noites e noites mal dormidas e muitas refeições esquecidas, um dia finalmente traz à tona o comunicado bombástico: “Mamãe, gostaria de te dizer que vou mudar para a Alemanha para me casar!”

Era o anúncio do fim de uma etapa em minha vida. Em três semanas, tudo aquilo que me era tão familiar e precioso ficaria para trás, seria arquivado no baú de minha memória ... E a dura escolha, que me estraçalhara o coração, “A escolha de Sofia”: meu amado gatinho Tico não poderia ir comigo, logo teria que relegá-lo ao quase abandono, sob os cuidados das empregadas de minha mãe ( Tequinho, por não mais pertencer a este mundo há alguns anos, estava fora de meu dilema)... Lembro-me ainda dos lastimosos miados de Tiquinho, da dilacerante dor que me atravessava o peito, dor de ter que partir sem o meu filho... Recordo-me "em preto e branco", num amálgama de turvas reminiscências, de minhas derradeiras andanças pelo bairro, onde eu mirava as casas, os carros, os locais tão familiares como se fora pela última vez... Dirigia-me a pessoas na rua, perguntava alguma coisa apenas para gravar em minha mente o som de vozes com as quais havia me acostumado, proseava com vendedores ao comprar alguma coisa, e ao me despedir pensava: nunca mais... Em poucas semanas eu estaria do outro lado do Atlântico, para viver uma nova vida, nascer de novo... e para renascer é preciso morrer.




Texto elaborado por Vera Rodrigues-Rath em Plattling, Alemanha, em 29 de dezembro de 2003.


Primeira revisão em 30/12/2003.


Segunda revisão no mesmo dia, às 21:30 (horário da Alemanha). Texto ainda sujeito a alterações.

 


NOTAS EXPLICATIVAS


Plágio proposital do título do filme "A insustentável leveza do ser" ("The Unbearable Lightness of Being" - 1988) de Philip Kaufman, tendo como intérpretes vários atores, entre os quais Daniel Day-Lewis e Juliette Binoche.

Ersatz: palavra em alemão que significa algo como "substituto". Aprendi este termo com meu amigo e mestre Francisco Calbucci.

Dedicatória: consagro este escrito a Paulo Sérgio Patriota, que tanto tem me incentivado nos últimos tempos a desenvolver o meu aspecto literário.

Foto: uma pequena homenagem aos meus genitores, meu querido papai Antonio de Mello Rodrigues e mamy Maria Emília de Azevedo Rodrigues

Nenhum comentário: