domingo, novembro 30, 2003

CHOVE? NENHUMA CHUVA CAI...


Foto batida por Verinha Rodrigues-Rath, no inverno do ano 2001. Vista da sacada de minha casa, em Donauwoerth, Alemanha.




Ai, que saudades daqueles dias brancos e frios! Eu era tão pequena e frágil; a chuva lá fora resguardava-me junto ao cálido leito, onde, enroscando-me por entre lençóis e cobertas, à meia-luz, devorava torradas e gibis, ao abrigo das intempéries de um mundo hostil.

De quando em quando, voltava o olhar para a janela, persiana aberta e vidros cerrados, de onde degustava um muro branco, quase brilhante, claro como a chuva e a neve. Sempre chovia e nevava no muro de meus sonhos.

Era mais um daqueles dias preciosos, nos quais, fingindo-me enferma, mantinha-me à distância da escola, palco de sofrimentos indizíveis, dores que o meu coração de criança não podia suportar. Havia dois mundos opostos e inconciliáveis, cujas fronteiras definiam-se a partir da soleira da porta de minha casa. Era preciso não misturá-los: não macular o meu mágico universo familiar com os horrores que conhecera lá fora.

Agarro-me fortemente aos lençóis, sinto o calor e aconchego de minha cama de doente, único canto onde me sinto protegida, livre para sobrevoar os arco-íris de um universo fantástico, livre para tudo querer e para tudo poder ser, levitando entre estrelas e planetas, contemplando, do infinito azul, a pequenez da Terra e seus habitantes. Talvez até chova em algum recanto. Mas aqui, nenhuma chuva cai.




Vera de Azevedo Rodrigues



Obs1: plagiei involuntariamente o máximo poeta Fernando pessoa, uma vez que ele compôs um poema com o mesmo título. Não tinha conhecimento disto quando redigi "Chove, nenhuma chuva cai".

Obs2: Assino Vera de Azevedo Rodrigues, pois este escrito data de meus tempos de solteira. Acrescentei um "de" ao meu nome, uma vez que por um não tão significante descuido de meus pais eu fora registrada como Vera Azevedo Rodrigues, e não Vera "de" Azevedo Rodrigues, como seria o correto.


Obs3: trata-se de uma composição autobiográfica, escrita sem rascunhos, onde pude nas entrelinhas deixar entrever a essência de meu ser.