sábado, janeiro 10, 2004



A ÚLTIMA CEIA





Ontem conseguimos fazer o percurso Donauwoerth-Plattling num bom tempo, 2 exatas horas. Quando nos aproximávamos de Plattling, uma densa névoa se ia formando na estrada, como que respeitando o nosso íntimo desejo de "obliterar a quase insustentável realidade". Não queríamos realmente nos deparar com o que nos esperava, e a natureza nisto nos auxiliava - a visibilidade na estrada ía cada vez mais se rarefazendo, havendo momentos em que eu julgava impossível que Stefan continuasse a dirigir, por não enxergar 2 metros além da dianteira do carro... eu não saberia distingüir se em nossa frente haveria um túnel ou uma ponte, uma curva ou uma reta... Faróis acesos, os motoristas alemães dirigem com cautela, acostumados que estão com estas adversidades
climáticas...


ÀS QUATRO HORAS E OITO MINUTOS ADENTRAMOS OS LIMITES DO MUNICÍPIO DE PLATTLING


Finalmente, o momento crucial... at home. Já nos interiores da casa de mamy Rath, pela primeira vez sem a presença da mesma... castigados pelo frio impiedoso que gelava até os ossos, lá fora a neve recobrindo a calçada, o jardim, os telhados...

É chegado o instante "D". Cá estamos, no mesmo local em que sempre mamy Rath por nós esperava... como ela sempre se alegrava todas as vezes que chegávamos! E como se entristecia todas as vezes que partíamos... praticamente sua vida era esperar por nós, eternamente aguardando a nossa próxima vinda... E todas as vezes que ouvia o ruído do motor do carro estacionando, lá vinha ela, com seu sorriso tímido, a comida quente no fogão carinhosamente preparada para a nossa recepção ...

Desta vez, ninguém para nos aguardar... silêncio... a casa sem sua alma.

E fomos adentrando os cômodos... na cozinha estavam os óculos de mamy e o jornal... como se ela se tivesse preparado para ler o seu periódico favorito dentro dos próximos cinco minutos... no hall, os ovos que a irmã trouxera da fazenda, fresquinhos, como se a qualquer momento ela fôsse aparecer para transportá-los para outro local... no quarto, no criado-mudo, seu livro de cabeceira, com o par de óculos "de reserva" ao lado... sua última leitura da noite
anterior... Na sala de costuras, uma calça de Stefan que ela alinhavara para fazer a barra... Trabalho cujo término fora relegado para a eternidade ...

Podíamos sentir sua presença por todos os cantos, no entanto ela não estava lá... os presentes que ganhara em seu aniversário, que ocorrera 3 dias antes de sua morte... tudo estava lá, denotando uma presença que sentíamos, mas não podíamos "ver" com os olhos...

Stefan não havia se alimentado o dia todo, e num certo momento cogitou a idéia de ingerir algo que o mantivesse em pé, num dia tão tumultuado no auge do inverno da gélida Alemanha... Abre a geladeira... lá está, por ele esperando, uma sopinha de tomate com macarrão que mama deixara na noite anterior... enfraquecido e famélico, Stefan esquenta no fogão a comidinha que mamy Rath reservara para ele... a última ceia.




Escrito de autoria de Vera Rodrigues-Rath, 9 de janeiro de 2004.